quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O ator em cena

O ATOR entra em cena cantando “A Volta do Malandro”, Chico Buarque. No palco tem apenas uma cadeira. Ele trás às mãos duas páginas, uma contendo um texto a ser lido e a outra todo o texto da cena.

A Volta do Malandro

Eis o malandro na praça outra vez
Caminhando na ponta dos pés
Como quem pisa nos corações
Que rolaram dos cabarés

Entre deusas e bofetões
Entre dados e coronéis
Entre paramgolés e patrões
O malandro anda assim de viés

Deixa balançar a maré
E a poeira sentar no chão
Deixa a praça virar um salão
Que malandro é o barão da ralé


Contraditoriamente após cantar a música ele senta, e como a falar sobre o próprio texto da cena, esse é um espaço pra improvisar contendo obrigatoriamente apenas um frase: “tudo que eu estou dizendo agora está nesse texto, é tudo teatro, é tudo mentira”.

(este que segue em negrito é o texto a ser lido, se chama “copos quebrados”) A vida a cada chance se prova cada vez mais Amarelo Manga. Aquele Amor em Vermelho tão abundante nos filmes sempre existiu somente nos filmes.
“Segure minha mão e me acompanhe pela jornada, dois serão sempre maiores que um”. Mentira. Chega de toda essa merda.
Agora as lágrimas que escorrem pela minha face não mais que desidratam minha alma tornando-a suscetível a doenças e parasitas. Um bom sorriso, dissimulado ou não, é a parede que me protege do ladrão da razão e do bom-senso. É olhando pra frente sem esperar grandes feitos ou grandes amores, encarando que o sol de hoje é o mesmo que o de ontem, e que será o mesmo que o de amanhã que um homem se constrói. É sendo egoísta que os valores têm valor. É olhando pra frente, sem sonhar ou ilusionar as coisas que se vai em frente.
Exposta toda minha verdade fica a grande dica: goste, mas não goste tanto, afinal a essência do amor é a falsidade.



Eu te amo. Eu te amo. Ah Liz eu não te amo, eu nunca te amei.(pausa)

Eu sempre tive uma personagem. Uma personagem que era um lugar fácil, quase como uma casca protetora, que nunca me deixou apanhar. Sempre reconfortou meu ego. (apontando a um expectador) Porque você a ama. Mas não, você não me ama. “É que tem coisa que espanca, mas espanca doce! A gente sente tudo a gente se envolve com tudo! Não adianta fingir que não sente, gente sente tudo, gente se envolve com tudo”.(pausa) E por essa personagem eu comecei a fazer teatro, afinal lugar de personagem é no teatro. Aqui é o lugar dela. E eu gosto de aparecer, gosto de ser visto. Gosto que gostem de mim. E pra isso eu FAZIA teatro, pra vocês gostarem de mim. Essa personagem gosta que vocês gostem dela. (pausa) Mas infelizmente eu fui descobrindo que o teatro não é lugar pra personagens, e sim pra atores. (à frente do palco se relacionando com a cadeira onde antes estava sentado) quando eu estava te criticando, você sentiu alguma coisa? Gostou? Não gostou. E por que você não me mostrou isso hora nenhuma? (pausa) proteção, ok. Olha pra mim Fabiano, olha de verdade, seu olho está igual um vidro. Olha pra mim! Isso. Respira. Abre os braços. Deixa esse turbilhão aí dentro te levar. Se sinta grande. Vai, você é um Deus, isso um Deus. Cresce. Grande. Olha pra todo mundo, mostra pra eles que você está aqui. Isso. Deixa fluir essa energia que grita aí dentro. Essa energia que é grande é do tamanho de um Deus. Sinta isso. (pausa) Obrigado. Eu quero que você guarde isso. Escuta bem: você não está aqui pra representar. (pausa) Aqui não é lugar pra representar nada. Quem representa não serve pro teatro. (levanta e vai a centro de volta) Complicado? Eu explico. E a Liz vai me ajudar a explicar isso. Essa personagem escreveu esse texto(sacudindo a carta do primeiro texto da cena) a mais ou menos um ano atrás, e sim, ela amava. Mas era um amor que estava aqui, e isso aqui não é nada. Deus está mais no fundo, mais lá dentro.
A Liz é uma moça parisiense, e essa personagem quer um amor parisiense. Ela precisa de paris, do glamour que tem em paris, precisa tocar em paris.(pausa) E Paris não existe. As coisas são reais, o amor é real. E quem ama paris não ama. Vislumbra.
(riso) A Liz parecia que tinha saído direto de uma pintura de Michelangelo, ou então que tinha se desprendido pra sempre da até então eterna posição de estátua grega. E essa personagem disse: Liz, eu te amo. Não fazia o menor sentido. Cada lágrima que escorria pelo meu rosto só provava a essência falsa do amor. Porque não tinha amor. E sem amor, tudo não passa de teatro. E essa personagem provava ainda que eu não sentia, que eu era cinza, que as coisas são feitas pra hoje, que a profundidade era alcançada com um beijo, que o sol de cada dia era o mesmo. E isso tudo porque a pele era mais forte que o coração. E agora vejo que nessa hora não tinha Deus nenhum. Que era representação. Que estava aqui, e não aqui. E isso é mentira, o amor existe, paris não existe.
E é aí que entra o teatro.(pausa) Eu faço teatro pra parar de interpretar. É por isso que eu faço teatro, pra ser eternamente feliz, ser profundamente triste, pra deixar minha cara ser estapeada, pra tirar minha casca. Pra ficar nu. pra parar de interpretar. Pra sentir, pra ser ator. Pra viver. Pra sorrir quando for engraçado, pra gargalhar quando for muito engraçado, pra cair no chão de dor quando doer, pra amar, pra querer. Pra ser intenso, pra amar, pra ser profundo, pra gritar até minha garganta doer. Chorar quando a lágrima vier. Pra ir até paris, quem sabe? Pra desprender minha alma. Pra sentir. Sentir. Pra parar de interpretar. Pra poder não gostar quando eu não gostar. Pra amar. Pra existir. Pra amar, pra amar, pra amar. Eu te amo, eu te amo, eu te amo...

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